Quando falamos em manuscritos, referimo-nos às cópias nas
línguas originais e em traduções, às cópias nas línguas vernáculas em que
a Bíblia é traduzida. As traduções são necessárias, por três razões: 1) Nem
todos os povos falam a mesma língua; 2) as línguas estão sempre se
modificando; 3) a Palavra de Deus tem estado espalhada em muitos países,
de modo que, para melhor propaganda, é necessário tê-la na língua própria
do povo. Entretanto, compete-nos lembrar que as traduções não são
inspiradas por Deus; porém servem como um testemunho da existência e
autenticidade dos originais. Se não pudermos ter as palavras exatas pelas
traduções, ao menos teremos o sentido sem conflito qualquer de doutrina.
Estamos agora mais interessados nas versões em português, mas
será necessário estudarmos os diversos períodos por que a Bíblia tem
passado antes de chegar a ser conhecida na bela língua lusitana.
A LXX
A mais antiga versão que existe é a septuaginta. Esta é uma
tradução livre, desviando-se, em muitos lugares, da original hebraica. Foi
feita em 285 antes de Cristo, provavelmente para os judeus que foram
espalhados por todas as nações, uns 160 anos depois da volta de Neemias
do cativeiro. Há muitas lendas acerca desta tradução: todavia, podemos
dizer que foi a obra de setenta redatores em Alexandria. Sendo em grego,
provavelmente, existia nos tempos de Jesus Cristo, mas não há evidência
alguma de que ele ou os seus discípulos a usassem. Pelo contrário, é mais
provável que Jesus falasse aramaico, salvo quando falou à mulher sirofenícia
(Mar. 7:26) em grego, a fim de que ela o compreendesse. As
palavras, nos Evangelhos, que vêm a nós sem serem traduzidas são
aramaicas: «Talita Cumi» (Mar. 5:41); «Eloí, Eloí, lamá-sabactani» (Mar.
15:34). A Septuaginta tornou–se a base de muitas traduções.
As outras traduções na língua grega que merecem menção são as
seguintes: A versão de Áquila, um homem natural de Sinope, em Pontus,
que se converteu do paganismo ao judaísmo.
No século II ele procurou fazer uma tradução literal do texto
hebraico. A versão de Teodotion, de Éfeso. Ele reviu a Septuaginta; e a
versão de Symmachus de Samaria.
Tendo mencionado o manuscrito de Efraim no capítulo anterior,
não podemos deixar de mencionar uma versão Siríaca, chamada o Peshito,
que foi completa no século II, provavelmente antes de 150. Foi
preparada para provas do seu uso entre os seus patrícios.
No segundo século, o latim suplantou o grego e ficou sendo por
muitos anos a língua diplomática da Europa. Ao longo da costa
setentrional da África organizaram-se umas igrejas compostas de pessoas
de língua latina. Para essas, foi preparada uma versão latina. A sua história
e origem são desconhecidas. O Velho Testamento foi vertido da
Septuaginta, e ao Novo Testamento faltavam os seguintes livros: Hebreus,
Tiago e II Pedro. Tertuliano e os seus contemporâneos usaram-na
livremente. Esta tradução foi a base da Vulgata, a qual se tornou a Bíblia
autorizada da Igreja Católica Romana.
Notar-se-á, pela comparação destas versões antigas, que existiam
todos os livros do Novo Testamento, menos o de II Pedro, no século II.
A Vulgata
No ano 383, São Jerônimo era um dos mais sábios do seu tempo,
sendo secretário de Damasus, Bispo de Roma; este o convidou para corrigir
e melhorar a Bíblia latina, então em uso nas igrejas do leste. Aquele
sábio completou a revisão do Novo Testamento. Depois da morte de
Damasus, Jerônimo mudou-se para Belém, onde fundou um mosteiro. Aí,
no 80° ano de sua vida, começou uma nova tradução do Velho Testamento,
do hebraico para o latim. Esta é conhecida como a Vulgata,
incluindo a apócrifa, e ficou sendo a base de todas as traduções por mais
de 1.000 anos. No Concilio de Trento (1545-1547) foi proclamada
autêntica, e um anátema foi pronunciado sobre qualquer pessoa que
afirmasse que qualquer livro que nela se achava não fosse totalmente
inspirado em toda parte. Concordando com a decisão do Concilio em ter
uma edição autorizada e uniforme, Sixtus V publicou um texto em 1590.
Porém os seguintes livros apócrifos foram omitidos: 3
o a 4
o Esdras; 3o
Macabeus e a oração de Manassés, e estava tão corrompida por erros
tipográficos e outros, que Clemente VII sentiu a necessidade de retirá-la da
circulação e publicar uma edição melhor em 1592. Esta tem sido a Bíblia
seguida pelos católicos romanos em todas as suas traduções. A Bíblia
Douai e o Novo Testamento publicado em Reims foram traduzidos da
Vulgata.
A Renascença
Depois de longos anos de eclipse intelectual, o mundo
experimentou uma renascença que se estendeu por toda parte na Europa.
Os estreitos limites geográficos desapareceram pelo descobrimento de
novas terras, e este contato repentino com novos povos, novas crenças e
novas raças revivificou a inteligência sonolenta. Quando a cidade de
Constantinopla caiu nas mãos dos turcos em 1453, os gregos eruditos
fugiram para as bandas da Itália, levando as suas ciências e letras.
Escolas foram estabelecidas, e o povo italiano interessou-se mais
nos manuscritos do Oriente do que na sua própria arte de estatuária. Com a
vinda da língua grega para a Europa, um despertamento verdadeiro
apoderou-se dos centros educacionais, e estudantes de toda parte procuraram
os mestres da língua antiga. E, antes do fim do século XV, pelo
desenvolvimento da imprensa, todos os autores latinos tornavam-se
acessíveis e todas as obras gregas foram publicadas antes de 1520.
Conseqüentemente, novas visitas intelectuais se apresentaram e o mundo
experimentou verdadeiramente um novo nascimento.
Durante mil anos a Vulgata teve a aceitação universal na Igreja, e a
Teologia tornou-se tradicional; porém esta nova época forneceu a chave
para dar origem aos Evangelhos e o Novo Testamento. A teologia mística
da Idade Média foi suplantada pela nova ênfase dada à pessoa de Cristo
como se encontra nos Evangelhos. O Novo testamento em grego, pelo
erudito Erasmo, em 1516, desafiou as tradições e pôs de parte a Vulgata.
Erasmo tinha um desejo ardente de deixar a Bíblia clara e inteligível a
todos. Disse ele: «Quero que mesmo a mulher mais fraca leia os
Evangelhos e as epístolas de Paulo. Queria-os traduzidos em todas as
línguas, para que fossem lidos e compreendidos por todos, mesmo pelos
sarracenos e turcos. Porém o primeiro passo necessário é fazê-los
inteligíveis ao leitor. Eu almejo o dia quando o lavrador recite para si
mesmo porções das Escrituras enquanto vai acompanhando o arado,
quando o tecelão as balbucie ao ritmo da sua lançadeira e o viajante repare
o cansaço da sua viagem com os seus contos.» Esta era uma profecia
verdadeira, a qual está sendo cumprida em nossos dias.
Nesta época foi publicado um livro (*)
2 em que o autor previu que
no futuro a religião verdadeira teria o seu centro na própria família, assim
como o grande princípio de tolerância religiosa, e também que essa
religião fosse divulgada por polêmica e apologética, e não por violência
nem insulto às religiões alheias.
Com o novo impulso intelectual, a tradução da Bíblia na língua
vernácula tomou novo aspecto. Os sábios e os iletrados, os ricos e os
pobres, os reis e os plebeus, os eclesiásticos e os leigos, todos ajudaram
neste glorioso trabalho. Outro tanto pode ser dito do impedimento que
todas essas classes impuseram a esta obra de fama. Não podemos, nestes
estudos limitados, tratar minuciosamente de todas as importantes traduções,
ainda que gostaríamos de apresentar vários fatos históricos
concernentes a algumas delas que têm influenciado no desenvolvimento do
cristianismo. Lembrar-nos-emos que a nossa incumbência é a Bíblia na
bela língua portuguesa. Entretanto, não podemos passar sem mencionar
apenas algumas traduções notáveis.
Devido às perseguições que obrigaram os reformadores a fugir
dum país para outro, é dificílimo acertar em que parte do continente a
renascença teve a maior influência. Em toda parte rompeu a Reforma, e o
Novo Testamento de Erasmo serviu como base de muitas traduções. Na
Inglaterra, Guilherme Tyndale começou a dar a Bíblia ao povo na sua
própria língua.
Sendo severamente perseguido, foi obrigado a fugir para Colônia,
onde tudo estava caminhando bem, quando um padre odioso, procurando
saber do seu trabalho, embriagou os impressoras e aprendeu o segredo da
empresa. De Colônia, Tyndale foi a Worms, onde a Reforma de Lutero
estava progredindo. Ali completou a sua tradução em 1526. Os exemplares
foram enviados à Inglaterra secretamente em peças de fazenda, sacas de
farinha de trigo, etc. Porém os inimigos da Palavra de Deus, junto com os
católicos fervorosos, iniciaram uma campanha para acabar com esta
tradução, e o bispo de Londres comprou todas as cópias que pôde achar e
queimou-as em St. Paul’s Cross, nessa cidade. Felizmente, ainda mais
cópias emanaram pelo dinheiro das que o bispo comprou. Em outubro de
1536, Guilherme Tyndale foi traído, estrangulado e depois queimado na
estaca pelos católicos romanos, que sempre se opuseram à leitura da Bíblia
no vernáculo. Antes do último suspiro este grande reformador rogou:
«Deus, abre os olhos do rei da Inglaterra.»
Aqueles que queimaram a Bíblia de Tyndale mal supunham que
três anos depois o rei dissesse: «Em nome de Deus deixo a Bíblia ser espalhada
entre o povo.» A nova tradução que ele fez circular foi conhecida
como a Grande Bíblia, devido ao seu tamanho, e também como a Bíblia
Encadeada, porque estava acorrentada aos bancos das igrejas, para maior
segurança. Infelizmente, mais tarde o rei Henrique VIII proibiu a
circulação das Escrituras; conseqüentemente a destruição de Bíblias pelos
católicos era tremenda. As perseguições continuaram e alguns
reformadores ingleses fugiram para Genebra, onde publicaram uma Bíblia,
conhecida como a Bíblia de Genebra. Esta foi traduzida diretamente do
grego e hebraico, e foi a primeira Bíblia inteira a ser dividida em versos e
em que foram omitidos os Livros Apócrifos.
A história da Bíblia em inglês é de grande importância e interesse;
porém não nos devemos desviar do nosso propósito de tratar do Livro dos
Livros em português. Deixemo-nos, então, voltar para o assunto.
Menciono essas traduções inglesas para mostrar que tinham influência na
Europa também.
Fonte: A Bíblia E Como Chegou Até Nós